Amar a si mesmo é mesmo o bastante? O coletivo como potência de existência

09-09-2024

Autor: Wallyson Reis

Em tempos em que a máxima "se ame mais" é amplamente difundida, muitas vezes nos deparamos com uma visão simplificada do que realmente significa amor-próprio. A sociedade atual tende a promover o amor a si mesmo como um caminho individual de cura e fortalecimento emocional. Entretanto, ao olhar mais de perto, nos perguntamos: é possível amar a si mesmo de forma autossuficiente, isolada do outro?

A esquizoanálise, um campo desenvolvido por Gilles Deleuze e Félix Guattari, nos convida a pensar além dessa lógica individualista, que pode nos prender em um ciclo autocentrado, limitando nossa conexão com o coletivo e com os outros fluxos da vida. Eles introduzem a ideia de que somos múltiplos e atravessados por diferentes afetos, e, portanto, nossa subjetividade não se forma em isolamento, mas nas relações.

Deleuze e Guattari, em O Anti-Édipo, argumentam que "o desejo não está nem no sujeito nem no objeto, mas é sempre uma multiplicidade de fluxos" (Deleuze & Guattari, 1972). Aqui, o amor-próprio, isolado e restrito, pode ser visto como uma contenção dos fluxos de desejo, um movimento que nos distancia das potências coletivas que nos constituem e nos fazem crescer.

A Construção Coletiva do Amor

Se partimos dessa perspectiva, o amor-próprio não pode ser entendido como algo que basta por si só. Ele se torna apenas um ponto de partida, parte de um processo que envolve abrir-se ao outro e ao coletivo. Nossa subjetividade é construída por meio do encontro – seja com amigos, familiares, amantes ou comunidades. Como bem colocam Deleuze e Guattari, "não há sujeito, mas apenas processos subjetivos de produção" (Mil Platôs, 1980). Esse processo de produção de subjetividade é necessariamente coletivo, entrelaçando nossas vidas a uma multiplicidade de afetos e relações.

O isolamento no amor-próprio, nesse sentido, pode se transformar em uma forma de desconexão com o mundo. Quando nos fechamos na ideia de que basta amar a nós mesmos, ignoramos que somos seres interdependentes, constantemente moldados pelos encontros e desencontros com os outros. Freud já havia apontado que o processo de formação do "eu" não ocorre sem o outro. Em O Ego e o Id (1923), ele sugere que o "eu" se constitui a partir das identificações com figuras externas, ou seja, o outro sempre está presente na construção do amor próprio.

Esquizoanálise e a Expansão do Eu

A esquizoanálise desafia a noção de uma identidade fixa e autônoma. Ela nos propõe uma fuga da rigidez do "eu" em direção a uma pluralidade de afetos, onde o individual se expande no coletivo, e novas formas de vida e existência emergem dessa troca. Essa abertura ao coletivo possibilita que o amor-próprio se transforme em uma experiência de fluxo, de constante criação, ao invés de algo estático e autocentrado.

Nesse sentido, o amor-próprio não é um fim em si, mas parte de um processo dinâmico, em que o eu se forma e se reformula a partir do contato com o outro. O verdadeiro crescimento emocional ocorre quando nos permitimos experimentar essa multiplicidade de afetos e trocas, que nos tiram de uma posição de isolamento e nos colocam em movimento com a vida.

O desejo, assim como o amor, é coletivo e sempre em fluxo. Ao amar a nós mesmos de forma isolada, podemos acabar por perder a oportunidade de nos reinventarmos através do outro. A esquizoanálise nos oferece um caminho para escapar das amarras de um "eu" fixo, propondo que a subjetividade se desenvolva em redes e encontros, onde o amor não é fechado em si, mas expansivo e criador.

Amor Compartilhado: Potência de Vida

Ao perceber que o amor-próprio é apenas o ponto de partida, descobrimos que o que realmente nos transforma é o amor compartilhado. A partir dos encontros e trocas que temos, somos forçados a reconfigurar nossas próprias fronteiras, nos tornando mais do que éramos. No fundo, deixar de ser uma ilha e fazer parte de algo maior nos leva a entender que a interdependência é fonte de força, e não de fraqueza.

Amar a si mesmo é importante, mas só ganha verdadeiro significado quando expandimos esse amor ao coletivo. Como propõe a esquizoanálise, é na multiplicidade e nos fluxos que encontramos o verdadeiro poder de transformação.

Referências:

  • Deleuze, G., & Guattari, F. (1972). O Anti-Édipo. Rio de Janeiro: Editora 34.
  • Deleuze, G., & Guattari, F. (1980). Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34.
  • Freud, S. (1923). O Ego e o Id. Rio de Janeiro: Imago.
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